A Guarda Natural
Por Haroldo de Azevedo Carvalho do Canil Guardiões de São Jorge.
"O Contrário de medo é Amor" - Portões de Fogo de Steven Pressfield.
Há milhares de anos os cães acompanham a humanidade, em especial tratamos aqui daqueles utilizados para Guarda e Proteção Pessoal.
Os registros históricos indicam grandes cães utilizados pelos Assírios e Sumérios em combate em 3.200 Antes de Cristo(AC). Na Armênia, no século I AC, Tigran II, O Grande, utilizou os Gampr (raça que deu origem aos protetores de rebanho) em seu exército. O Kuvasz, que em Turko significa o "protetor", acordo com Von Stephanitz, uma autoridade alemã em todas as raças da europa central, foi trazido das estepes russas pelos hunos. A palavra Kuvasz vem da palavra sumerian Kuassa. Esta palavra foi encontrada inscrita em cuneiforme nas placas escavadas em cidades sumerianas antigas registro que tem aproximadamente 7.000 anos.
E os registros históricos de cães protegendo e combatendo passam pela roma antiga com os grandes Molossos Italianos, continuam por toda a idade média, também foram de grande valia nas batalhas com os índios da América do Sul e no Brasil, por toda a época colonial (1500 a 1882) e além (a lei áurea é de 1888) os Filas eram utilizados para controlar e caçar escravos fugitivos.
Assim, toda essa bela história dos cães protegendo territórios e lutando ao lado de homens remonta a séculos antes do adestramento moderno, cujo principal expoente é o Shutzhund (cão de Proteção em Alemão) que se iniciou na Alemanha em 1900, como forma de selecionar Pastores Alemães para trabalhos dentro ou fora de seu território, diante da necessidade de selecionar estes cães, pois já naquele tempo era perceptível que os cães estavam perdendo sua capacidade para o trabalho.
Hoje o Shutzhund é a base de todo o Adestramento Moderno Ocidental e o teste de Proteção consiste em avaliar a coragem do cão para atacar proteger a si e ao seu condutor e atacar sob comando a distância, em provas realizadas em campos de treinamento ou estádios esportivos.
O Shutzhund originalmente era um meio de seleção de cães e atualmente é um esporte com pontuação que avalia rastreamento, obediência e proteção (em que o cão perde pontos se morder o homem e não o material) , tudo isso fora do território do cão, pois os campeonatos acontecem em campos de treinos e estádios esportivos em vários lugares do mundo.
O adestrador Helmut Raiser é o mais citado pelas escolas de adestramento atuais porque em 1981 com a publicação de seu livro "Der Schutzhund" (O Shutzhund) ele revolucionou o esporte na Alemanha, porém tais mudanças só chegaram a Inglaterra e aos Estados Unidos em 1999 com a tradução de seus livros para o Inglês, por Admin Winkler.
Ou seja, o Shutzhund Atual de Helmut Raiser data de 1991 na Alemanha e de 1999 no restante da Europa e Estados Unidos, de forma que é extremamente recente, pois se fosse um humano, seria um jovem Alemão ou um adolescente Americano!!!
Essa "juventude" do Shutzhund, para mim é a principal razão da não aceitação dos alunos da escola atual de adestramento ocidental do Tradicional Conceito de Guarda Natural.
Guarda Natural é a proteção ao território e ao dono inata no Cão, comportamento que se manifesta pelo instinto protetivo que carrega em seus genes somado ao que aprende observando a sua mãe e eventual restante da Matilha, naturalmente, assim como os lobos e demais canídeos selvagens.
Sobre se tratar de uma condição gênica, vale transcrever as palavras de Ed Frawley, Criador de Pastores Alemães e Adestrador Americano, membro do Clube de Shutzhund desde 1976:
"Logo de início todos precisam entender que os drives para o trabalho de proteção são herdados. É um fator genético e não racial ou de adestramento. Em outras palavras, se o cão não tiver uma boa genética para trabalho de proteção você não conseguirá enfiar os drives nele."
De maneira semelhante é a opinião do Espanhol Marco Lobera, criador de Presa Canário e Pastor do Cáucaso que testou a guarda dezenas de cães e escreveu uma centena de textos sobre cães:
"Na minha opinião, é a desconfiança inata em algumas raças de cães, é algo que eles carregam em sua genética. Essa desconfiança pode ser aumentada ou diminuída como educação que é dada ao cão, mas ele é uma característica fundamental inata. Obviamente, essa desconfiança é aumentada se você isolar o cão e não deixar fazer contato com humanos que não sejam da família. E, obviamente, que a desconfiança diminui se você sociabiliza muito o cão, se você deixar muito contato com estranhos e permitir que eles o acariciem. Mas, essencialmente, eu acho que é um recurso que está na genética do cão. Eu vi Cáucasos que foram muito tocados desde filhotes e, no final, também lhes surgiu a desconfiança porque estava dentro. Por outro lado, tenho visto raças de cães que não são desconfiados por natureza, que foram isolados de seres humanos, e na hora da verdade , mesmo muito "provocados" nunca chegaram nem perto do nível de desconfiança de outros cães, desconfiados por natureza."
Os comportamentos Caninos, utilizados no manejo e educação dos cães, são chamados de impulsos (em inglês Drives), seguindo o Ensinamento de Ed Frawley eles são 3:
1. Drive de caça
2. Drive de defesa
3. Drive de luta
Da Leitura de Helmut Raiser e Ed Frawley, entende-se que o Drive de Defesa é divisível em 5 aspectos comportamentais, que são:
2.1 - Agressão Protetiva;
2.2 - Agressão Territorial;
2.3 - Agressão para Auto Defesa;
2.4 - Agressão para Defesa do Alimento ou da Caça;
2.5 - Evitação e Fuga (esse não se parece em nada com os 4 primeiros, conforme será demonstrado a seguir).
A Guarda Natural é baseada em duas facetas do Drive de Defesa, que são os impulsos de Agressão Protetiva e o de Agressão Territorial.
Agressão Protetiva é o impulso de proteger aos filhotes e demais membros da Matilha de qualquer tipo de ameaça , o ataque é firme e com o rabo a meia altura.
Como o nome indica, a Agressão Territorial é quando o cão sente que o seu domínio do território foi desafiado por um humano ou outro animal. Se impulsionado pela Agressão Territorial o cão ataca enfurecido e de rabo erguido.
Ed Frawley é explícito ao descrever que o Cão se comporta em Defesa quando protege o território, o seu dono e a sí mesmo.
E o próprio Helmut Raiser, que é direto ao mencionar que o Drive de Defesa não pode ser o principal impulso do cão no Shutzhund (esporte praticado fora do território do animal), em seu livro Der Shutzhund, descreve que o cão defensivo se mantém lutando quando dentro de seu território:
"Infelizmente, um cenário como este raramente se parece com o descrito, com mais frequência do que se possa crer, o cão será quem foge a não ser que algo mantenha seu interesse e o force no comportamento de defesa como: a presa, o territorialismo ou a não opção de fuga; situação à qual ele esta amarrado e não pode fugir. Isto mostra a relação antagônica entre o impulso de defesa e o comportamento de evitação."
Como a Guarda Natural dos cães é historicamente aproveitada há milênios para defesa patrimonial e pessoal e a enorme maioria das pessoas já vivenciou casos de cães mordendo pessoas e até matando ladrões, poucas afirmações no mundo podem ser mais equivocadas do que afirmar que ela não existe.
Até mesmo porque sobre a existência da Guarda Natural, comportamento protetiva do território e de sua matilha, Helmut Raiser, Ed Frawley e Marco Lobera são unânimes em a admitir, seja tácita ou expressamente, vejamos:
Helmut Raiser:
"Na prática, provocar o comportamento de defesa no cão pode ser feito da seguinte maneira: o figurante se aproxima do cão e o ameaça, resultando em comportamento agressivo de ameaça por parte do cão (rosnar, latir, morder). Neste momento o figurante foge e o cão atinge o final do objetivo de seu impulso."
...
Cães confiantes que tem alto limiar de excitação para o estímulo disparador afetando o comportamento de evitação (coragem) irão reagir mostrando comportamento de defesa mais do que o de evitação."
Ed Frawley
"O quadro que observamos de um cão não adestrado em defesa é totalmente diferente do que está em caça. Inicialmente ela demonstra insegurança. Os latidos são mais profundos e sérios. Os pêlos estão eriçados nas costas e ele estará mostrando todos os seus dentes e rosnando."
Marco Lobera
"Na desconfiança e agressividade para com estranhos, como explicado no artigo 2.10, digo que é indispensável a territorialidade no cão de guarda. E essa desconfiança e territorialidade tem em boa proporção naturalmente no bom Cáucaso. Saliento que no bom Cáucaso, porque há também muitos exemplares ruins que nem desconfiam ou são territoriais. Esta desconfiança é variável em grau ou idade em que ela aparece, mas é inata em um bom Cáucaso e deve sempre existir em um adulto."
É de suma importância diferenciar a desconfiança dos cães que apresentam Guarda Natural de insegurança e do medo, comportamentos inerentes a evitação e a fuga, conforme bem explica Ed Frawley:
"Se alto drive de defesa fosse ruim, não existiria fila brasileiro de qualidade, e os rotts antigos teriam sido cães sem qualidades, e que atacariam por medo. Quem já viu aqueles cães atacarem nunca irá se esquecer. E medo era a última coisa que eles sentiam.
...
- Dilatação das pupilas: as pupilas se dilatam para aumentar a claridade sobre a retina e também para aumentar o campo visual. A atenção do cão está mais dirigida à vigilância do que à tenacidade. Vigilância alta é característica das presas e de quem precisa fugir. Por isso, os herbívoros têm os olhos do lado da cabeça, para aumentar o campo visual e a vigilância. Tenacidade é característico de quem quer atacar, por isso, os predadores têm os dois olhos na frente da cabeça para ter melhor noção de profundidade e se concentrar melhor no ataque.
- Cauda baixa: a cauda baixa visa proteger os genitais. É uma atitude típica de defesa. - Pêlos eriçados: o cão procura assim aumentar sua silhueta, parecendo maior para espantar o inimigo.
- Latir grosso: da mesma forma, o cão procura mimetizar um cão maior de latido mais grave.
Em verdade, este animal está demonstrando um prenúncio de fuga. Está dando uma última cartada para tentar "sair por cima", tentando assustar mais seu adversário do que este o assusta. Se não conseguir, irá fugir. Não é questão de "se", mas de "quando". MAS, A SITUAÇÃO ACIMA NÃO PODE SER CONFUNDIDA COM A SITUAÇÃO DE O CÃO TER UM ALTO DRIVE DE DEFESA.
Os sinais expostos anteriormente não são sinais de alto drive de defesa, mas sinais de um prenúncio para a fuga. POR ISSO, NÃO PODEM SER CONFUNDIDOS SINAIS DE FUGA COM ALTO DRIVE DE DEFESA. UM CÃO COM ALTO DRIVE DE DEFESA NÃO IRÁ DEMONSTRAR NADA DISSO. MUITO PELO CONTRÁRIO. IRÁ ATACAR FIRMEMENTE COMO UMA LEOA QUE DEFENDE SUA PROLE."
Nos dias atuais, infelizmente, poucos cães são Guardiões Naturais Eficazes, isso ocorre por 3 razões principais:
- As Duas Grandes Guerras quase que dizimaram diversas raças caninas e para reconstrução das mesmas foram utilizadas outras raças sem função de defesa patrimonial. Excetuando desse fator as raças de cães utilizadas pelos exércitos e aquelas dos países que não foram palcos das batalhas;
- A seleção para exposição, que escolhe os mais sociáveis para reprodução, além de priorizar beleza em detrimento do temperamento mesmo nas raças ditas de guarda;
- Os esportes, que hoje são muito diferentes do início, pois como ocorre no Jiu Jitsu, a regra de pontuação distancia as competições da efetividade real, o que nos cães reflete na sua seleção, que prioriza cães de temperamento mais brando, portanto muito mais obedientes, sem instinto protetivo e que enxergam as situações apresentadas nas provas como brincadeira, de modo a jamais buscar morder fora da manga.
O objetivo final do Guarda Natural é proteger o seu território e a sua família, assim considero simplista dizer que o cão defensor pretende apenas que o oponente fuja, óbvio que vencer sem lutar é a vitória perfeita (Sun Tzu), porém, se o oponente não foge, o verdadeiro Guardião Natural irá lutar até que ele mesmo ou o inimigo morra.
O teste é a única maneira de saber se um cão é um Guarda Natural eficaz, do mesmo modo que também é a exclusiva maneira de saber se o cão treinado para proteção funciona em uma situação real.
O Guarda Natural pode ser treinado para defender o seus donos e seu território?
Pode sim! Muito provavelmente o será de maneira diferente do cão que é mais impulsionado pelo drive de caça ou treinado desde filhote. Porém o treino preparará o cão para situações muito mais complexas do que as que ele está preparado naturalmente para enfrentar.
Por isso, EU SOU A FAVOR E DEFENSOR DO ADESTRAMENTO COM ADESTRADORES FOCADOS EM SITUAÇÕES REAIS!!!
O percentual de cães de guarda com Guarda Natural Eficaz deve ser realmente baixo, pelos motivos elencados acima, porém em determinadas raças Marco Lobera defende o percentual de 30% e, ainda, de 75 a 80% nos casos de filhotes de pai e mãe que foram aprovados no teste de invasão:
"Portanto, muda totalmente a compra de um Cáucaso em que não se sabe nada dos pais, ou estes não terem comprovado a sua eficácia, de comprar um caucasiano linhas de elite e que os pais testados tenham demonstrado a sua eficácia. Se você comprar um Cáucaso cujos pais foram aprovados para o trabalho, a possibilidade do seu cão passar no teste contra humanos pode superar a probabilidade de 75-80%, especialmente em se tratando dos exemplares machos."
Guarda Natural é rara e portanto valiosa, assim, tal qual tudo dessa ordem, deve ser preservado por meio de testes, seleção e adestramento, ainda que da forma antiga que é o indicado para os cães naturalmente desconfiados, como faz a Escola Ares, mas é essencial que os criadores adquiram a cultura cinófila de aprovação mínima em testes variados como qualificação para reprodução que já existe no Pastor Alemão e no Pastor do Cáucaso na Espanha.
Na foto o Odin, Pastor do Cáucaso de 30 meses, testado e adestrado para proteção por Ricardo Adestrador, Daniel Albuquerque e o EdCarlos da Pires.
Fontes:
Livro Der Schurzhund de Helmut Raiser;
Site Território PresOvcharka de Março Lobera;
Texto de Ed Frawley;
Padrão CBKC do Pastor do Cáucaso;
Site Kuvasz Rio do Átila Gandra;
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